Bruno Latour, o Príncipe das Redes

 

Bruno Latour é efetivamente um pensador fascinante.  Eu só o conhecia pela leitura de sua obra mais celebrada, Jamais Fomos Modernos. Mas agora, quase terminando o delicioso Prince of Networks: Bruno Latour and Metaphysics, de Graham Harman, posso dizer que todo um novo horizonte de problemas e questões se abriu diante de mim por meio de Latour.  Claro, boa parte desse encontro se deve à capacidade de sistematização e ao estilo atraente de Harman.  Pois Harman não é apenas um comentador competente, senão também um dos mais interessantes e originais pensadores desta nossa geração.  Há muito que dizer sobre um teórico ou pesquisador a partir da forma como ele escreve, e Harman escreve com clareza, elegância e leveza.  Em muitos momentos, dei inclusive gostosas gargalhados ao ritmo das frases espirituosas de Harman, não somente em Prince of Networks, mas também em seus trabalhos mais pessoais, como Guerrilla Metaphysics e Tool-Being.  Por outro lado, também existem elementos no modo de pensar e escrever de Harman que me exasperam.  Por vezes, ele me parece assertivo demais, nunca abrindo espaço para se auto-questionar e pouco moderando suas afinidades ou inimizades com pitadas de equilíbrio.  Além disso, também pode se tornar cansativo em sua repetição de certos estilemas ou torneios verbais.  Entretanto, nada disso diminui significativamente meu prazer ao lê-lo.  Em Prince of Networks, nos apresenta teses e idéias da mais alta complexidade de uma forma invulgarmente simples para os comentários filosóficos.  Claro, sua leitura de Latour é algo comprometida por seu programa ideológico.  Ele dá destaque àquilo que possa encontrar para ratificar suas próprias posições filosóficas e, nesse sentido, a obra sobre o francês é um também um estudo que oferece suporte a seu próprio sistema, bem delineado em Guerrilla Metaphysics e Tool-Being (onde Heidegger é o personagem central).  Desse modo, o que aparece com força especial em sua leitura de Latour é a tese anti-humanista de que o mundo se compõe de uma vasta série de “atores”, dentre os quais os seres humanos não detêm nenhuma espécie de privilégio.  A teoria ator-rede adquire, em Harman, um sentido de força, vida e concretude que faz justiça ao pensamento de Latour.  O livro opera de forma cronológica, analisando em seqüência os trabalhos mais importantes do francês.  Parte da fundamental intuição filosófica da “irredutibilidade” (nada pode ser reduzido a nada) para lançar-se em vôos cada vez mais sofisticados, em constante diálogo – e freqüentemente em conflito – com toda a história da filosofia no Ocidente.  Para Latour, entre objetos, idéias ou pessoas, não existe qualquer espécie de diferença ontológica.  Todos são “atores” (ou actantes), dotados de força própria e de capacidade de produzir efeitos no mundo.  Por isso, nenhuma teoria ou idéia que busque reduzir a heterogeneidade do real a algum princípio unificador é efetivamente satisfatória.  Nem o deus da religião, nem o inconsciente da psicanálise, nem o “poder” de Foucault conseguem traduzir adequadamente essa perspectiva.  Todos os seres, animados ou inanimados, orgânicos ou inorgânicos, materiais ou imateriais, conscientes ou inconscientes localizam-se no mesmo patamar ontológico (“on the same footing”, como não se cansa de repetir Harman).  Como bem explica nosso comentarista, “o mundo é uma série de negociações entre uma multiforme armada de forças, os humanos entre elas, e um tal mundo não pode ser dividido nitidamente entre dois pólos preexistentes chamados ‘natureza’ e ‘cultura'” (p.13).  Esse pensamento, segundo Harman, implica o nascimento de uma filosofia orientada aos objetos (object-oriented philosophy).  Os atores são fechados em si mesmos, têm seus próprios “pedigrees” ontológicos, são em essência autônomos e livres.  


Mas se é assim, como podem entrar em relação uns com os outros, como podem entrar em choque ou formar alianças, como poderia o mecanismo do mundo funcionar se nada se comunicasse com nada?  Ora, o paradoxo é que, se em princípio nada pode ser “reduzido” a outra coisa, ao mesmo tempo, tudo pode ser traduzido em outra coisa com algum esforço.  Ou seja, esses atores estão constantemente formando (e desfazendo) redes de força, relações que permitem traduzir dados de um determinado campo para outro, numa espécie de orgia comunicacional na qual a figura da rede é de vital importância.  Aliás, a filosofia de Latour tem importantes conseqüências para o campo da comunicação, pois mostra o quão prevalentes e importantes são as noções de mediação e interface.  Esse princípio (também universal) da tradução não é muito diferente da noção simondoniana de transdução (aliás, Simondon foi uma das grandes influências de Latour). Um pensamento como o de Latour demonstra cabalmente a inanidade da histeria definicional com que nos deparamos aqui no Brasil no campo dos estudos da comunicação.  Claro, sempre é possível delimitar como campo legítimo de pesquisa em comunicação apenas os fenômenos caracterizados pela mediação tecnológica (por exemplo, a “comunicação de massa”), contanto que esse recorte não tenha nenhuma espécie de pretensão ontológica ou epistemológica – e reconheça seus vetores políticos, econômicos e/ou ideológicos.  Mas do ponto de vista ontológico, seria possível dizer que a comunicação, assim como a mediação, as interfaces e os processos de tradução estão em toda parte.  O mundo é formado por diversas camadas ou níveis, nos quais os atores, sejam eles os cientistas, os políticos, um ator hollywoodiano ou o Chase Manhattan Bank, estabelecem relações através de “mediadores” (mediators)  e formam redes complexas.  Por outro lado, os atores não são algo diferente de suas relações.  Eles são suas relações e se caracterizam sempre como eventos, por trás dos quais não existe nenhuma substância que subsistisse de forma permanente.  Ou seja, um ator também é seus acidentes – e não, como sugeriria a teoria hilemórifica, o encontro de uma forma e de uma substância preexistentes e independentes (uma crítica realizada igualmente por Simondon).  Também não se trata de uma sustância imutável em cuja superfície se acrescentariam qualidades acidentais e possivelmente passageiras.  Outro modo de entender a realidade seria como uma série de negociações que nós, homens, mas também os objetos inanimados, entretemos uns com os outros: homens com homens, homens com objetos, objetos com objetos.  Do mesmo modo, o teórico negocia com certa realidade de modo a buscar uma forma de compreensão que lhe seja proveitosa – e nesse processo sempre existem esforços, riscos e perdas.  Pois em toda parte encontramos “resistência”, e os atores capazes de obter maior êxito face a essas resistências são aqueles competentes em arregimentar mais aliados, em estender e solidificar suas redes.  Nesse sentido, Latour não é nem um realista radical (pois enxerga muito bem a efetividade das coisas mentais, das idéias, das teorias, com seus impactos no mundo), nem um relativista, já que, apesar de nada ser intrinsecamente lógico, nem tudo é igualmente convincente.  Poderíamos dizer que, para ele, não existe um centro do cosmos repousando sobre o homem e suas visões do mundo, nem tampouco sobre uma realidade científica pura, sobre uma força da natureza contra a qual nossas idéias nada poderiam fazer.  O que existem são, simplesmente, atores dos mais diversos tipos: múltiplos e singulares.  A lição de Latour tem conseqüências importantes também no pensamento sobre a tecnologia, pois percebemos claramente que cada tecnologia compõe um agregado inseparável de forças materiais e simbólicas.  Como afirmei em um artigo analisando o fenômeno do iPhone, podemos dizer que não se trata apenas e simplesmente de um objeto técnico, mas também de um conjunto de idéias, representações e forças sociais – formando um todo inseparável, sem ser possível definir onde termina um e começa o outro.  Há muito mais a dizer que não caberia no espaço limitado deste comentário.  Mas vale a pena encerrar com uma breve menção à noção de “caixa preta”, bastante próxima, em muitos sentidos, daquela explorada por outro pensador de nosso interesse, Vilém Flusser.  Para Latour, uma caixa preta “é qualquer actante tão firmemente estabelecido que nós podemos desconsiderar seu interior (“we are able to take its interior for granted”).  As propriedades internas de uma caixa preta não contam, na medida em que estivermos preocupados somente com seu input e output” (p. 33).  Mas as caixas pretas não são apenas aparatos, senão qualquer espécie de ator tão consolidado que se torna quase que inquestionável: por exemplo, uma teoria científica ou uma uma certa “verdade social”.  E o cerne da atividade humana é buscar produzir continuamente – a grandes custos, claro – caixas pretas… De fato, creio que há muito que se pode dizer sobre as afinidades entre os pensamentos de Flusser, Latour e Simondon (como dos outros pensadores lidos no curso “Paleocibercultura”).  Mas isso ainda fica para outra ocasião.  Por hora é partir desse comentário para a leitura direta do excelente livro de Harman – que, diga-se de passagem, pode ser encontrado na internet em formato digital.






 https://sursiendo.com/blog/2013/10/la-propuesta-de-bruno-latour-y-la-teoria-del-actor-red/

 https://pt.wikipedia.org/wiki/Bruno_Latour

 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092016000300511