por Osvaldo López Ruiz
O título deste livro e as diferentes trajetórias dos autores certamente chamam a atenção, mas também podem desconcertar. O autor é o finlandês Pekka Himanen, doutor em filosofia pela Universidade de Helsinki aos 20 anos. Ainda com menos de 30, trabalha na Universidade de Berkeley com Manuel Castells, de origem catalã e hoje um dos sociólogos mais renomados do mundo, autor da trilogia A era da Informação (1996-2000). Com mais de 20 títulos publicados, Castells é o responsável, neste caso, pelo "Epílogo". O "Prólogo", no entanto, está nas mãos de Linus Torvalds, uma lenda viva dentro do mundo da informática, com pouco mais de 30 anos e também originário da Finlândia.
Torvalds criou, em 1991, o Linux, um kernel para o sistema operacional livre GNU (veja texto sobre software livre), quando estudava em Helsinki. A palavra kernel pode ser traduzida por cerne ou âmago, ele é uma parte central do sistema operacional. Hoje, o Linux é um projeto que envolve milhares de programadores e milhões de usuários no mundo todo e continua a ser desenvolvido por eles mesmos em forma aberta e cooperativa. Atualmente, o Linux é visto como a maior ameaça para a hegemonia da Microsoft, embora sua mais importante inovação seja mais social do que técnica: uma forma de trabalho coletivo onde as informações estão disponíveis livremente para todos, princípio básico da ética do hacker.
O livro trata do surgimento de uma nova ética do trabalho, diferente da ética protestante tão bem descrita por Max Weber há quase cem anos, onde a noção de trabalho aparece como dever, como vocação. A nova ética do trabalho é a caracterizada, pelos hackers. Mas, quem são esses hackers? A partir da própria orelha do livro, Himanen avisa: não se trata dos criminosos da computação -sentido recente e desafortunado que está tomando este termo-, mas sim dos hackers no sentido original da palavra, os entusiastas programadores de computação.
Entretanto, a bibliografia usada novamente desconcerta: de Platão a Richard Stallman - um dos maiores precursores do "hackerismo" e criador do GNU - à regras beneditinas e "statements" da SUN Microsystems, passando por Castells, Baudrillard, Dante e Agostinho (entre outros!). Surge então a inevitável pergunta: será que o autor conseguiu unir tantas e tão heterodoxas pontas e apresentar para o leitor um argumento convincente sobre uma nova ética do trabalho? Embora deixando temas em "aberto", com muito de exploratório e sem a densidade rigorosa que se espera de qualquer "Ética", o autor consegue definir um texto coerente e dinâmico. Com originalidade, coloca em diálogo algumas das grandes preocupações do homem de hoje e as questões do homem de sempre, mas, neste caso, apontadas para o atual contexto da Era da Informação.
A nova ética do trabalho, principalmente encarnada na atualidade pelos hackers, tem como precursora a academia. Os acadêmicos foram sempre um exemplo de relação mais flexível e livre com o trabalho. Por conseguinte, o autor apresenta no percurso do livro uma definição mais abrangente de hacker. Hacker é aquele entusiasta em qualquer tipo de trabalho, aquele que realiza seu trabalho com paixão, habilidade e cuidado artesanal. Aqui Himanen toma carona de um postulado dado por Torvalds no seu curto prólogo. Para o criador do Linux, existem três categorias básicas de motivações: a sobrevivência, a vida social e o entretenimento. Essa última, que vem depois de superadas as duas primeiras, deve ser entendida com E maiúsculo pois trata-se do tipo de estímulo que nos tira do tédio e do aborrecimento dando sentido às nossas vidas. Esclarece Torvalds que não está falando do entretenimento no sentido de jogar Nintendo mas sim do xadrez, da pintura e "da ginástica mental que envolve tratar de explicar o universo". Por isso, o Entretenimento pode ser qualquer coisa intrinsecamente interessante e desafiante, mas no entanto fundamental na vida de cada pessoa.
Himanen, contudo, traduz "Entretenimento" por paixão: a dedicação a uma atividade que seja intrinsecamente interessante, inspiradora e que cause regozijo. Trata-se, diz, do tipo de relação apaixonada com o trabalho que historicamente caracterizou o mundo intelectual. Critica, portanto, a relação do trabalho com o tempo estabelecida pela ética protestante. A ética protestante baseia-se no postulado: "tempo é dinheiro" e coloca o tempo regular do trabalho como o centro da vida das pessoas. Hoje, se pretende não só a otimização do (tempo do) trabalho mas também a "otimização da vida". O que acaba acontecendo é que o tempo de lazer e até o cuidar dos filhos assumem o padrão do tempo de trabalho. Fala-se muito, por exemplo, de "tempo flexível" mas, segundo o autor, essa nova flexibilidade, embora contribua para uma organização mais holística do tempo, está reforçando a centralidade do trabalho e as novas tecnologias estão ajudando particularmente isso a acontecer, afirma Himanen. Os hackers, porém, não subscrevem ao adágio "o tempo é dinheiro", e sim "o tempo é minha vida".
Neste sentido, a ética protestante sempre foi uma ética do dinheiro. Segundo Weber, o valor mais alto era "ganhar mais e mais dinheiro". Entretanto, na prática, tanto o trabalho, como o dinheiro constituíram-se em fins em si mesmos. Ainda mais; no antigo capitalismo, argumenta Himanen, o trabalho, como valor, posicionava-se mais alto que o dinheiro e, por isso, foi entendido como ética do trabalho protestante. Na nova economia, entretanto, mesmo que ainda possua um valor autônomo importante, o trabalho foi subordinado ao dinheiro. É assim que a nova economia informacional é também uma prolongação da antiga ética protestante. O que é enfatizado como valor supremo é justamente o dinheiro. Para os hackers, pelo contrário, o fator organizador básico da vida não é nem o trabalho, nem o dinheiro, é a paixão. Sua ética de trabalho enfatiza a atividade apaixonada e o ritmo livre do uso do tempo.
Entretanto, se no paradigma industrial uma pessoa era treinada para trabalhar das nove às cinco durante toda sua vida produtiva, esse não é mais o caso na economia informacional. O novo profissional informacional é "auto-programável ", tem a habilidade de re-treinar a si mesmo e adaptar-se a novas tarefas e processos. Ele deve aprender a ser seu próprio gerente e programar-se para trabalhar mais eficientemente. Não é por acaso, então, que muitos deles buscam a literatura de auto-ajuda, a literatura de "desenvolvimento pessoal". Himanen analisa um a um seus postulados e constata uma coisa interessante. Essa literatura ensina as mesmas virtudes que a velha ética protestante ensinou através de Franklin. Mais ainda, essas virtudes têm seu precedente nas regras monásticas Beneditinas, na era medieval. São valores no sentido filosófico tradicional, ou seja, os objetivos finais que guiam a ação. Coloca o autor que, tanto no mosteiro, como na literatura de desenvolvimento pessoal, o que se oferece é a promessa de uma experiência de claridade e certeza para a vida. A vida torna-se mais manejável se reduzida a um objetivo para cada momento no tempo. Cada pessoa só precisa se concentrar em um ponto fixo e excluir todo o resto. Particularmente numa era como a nossa, complexa e acelerada, essa literatura promete um novo tipo de "salvação". Não é por acaso que ela, como também diferentes fundamentalismos, tornaram-se mais atrativos na sociedade rede.
O autor conclui que, tanto nessa literatura de desenvolvimento pessoal, quanto no espírito da sociedade rede em geral, a lógica das redes de computador é aplicada aos seres humanos e a suas relações: "Os seres humanos são tratados como computadores, com rotinas mentais que sempre podem ser re-programadas de forma melhor...a gente deve se conectar com pessoas que são úteis para o nosso objetivo e se desconectar daqueles que não o são ou que inclusive sejam prejudiciais ao objetivo..." A lógica da rede e do computador nos aliena da preocupação direta com os outros, preocupação que é o começo de toda conduta ética. Na "sociedade-rede" [1] a ética teria sido substituída por uma filosofia de sobrevivência, e isto se explica a partir da atual relação com o tempo. A ética [2] precisa do pensamento sem pressa e da perspectiva temporal de longo prazo. Com a aceleração atual das práticas sociais surge, segundo Himanen, uma "barreira ética", uma velocidade a partir da qual a ética não pode mais existir.
Himanen vê nos valores que guiam a conduta dos hackers a saída, poderíamos dizer, desta versão exacerbada -e até distorcida- da ética protestante. Na ética do hacker, o principal valor é a paixão, entendida como uma busca intrinsecamente interessante que regozija com sua realização. Os outros valores são a liberdade, no sentido de que o trabalho seja criativo e tenha espaço para o jogo e a experimentação, a abertura e o sentido social -a Internet e o computador pessoal, lembra Himanen, não existiriam sem os hackers que deram sua criação para outros- e, finalmente, o que ele chama de atividade e preocupação. A atividade é definida como a liberdade de expressão em ação. Ela inclui: privacidade para proteger a criação do estilo de vida individual próprio e rejeição da receptividade passiva, em benefício de uma busca ativa da própria paixão. A preocupação, no entanto, é o interesse pelos outros colocado como um fim em si mesmo e o desejo de se libertar, na sociedade-rede, da mentalidade de sobrevivência que tão facilmente surge como resultado de sua própria lógica. É por tudo isso que o autor acredita que a ética do hacker pode representar um espírito genuinamente novo. Nele, o sentido não pode jamais ser encontrado no trabalho, nem mesmo no puro lazer. Ele tem que surgir da natureza própria da atividade, da paixão, do valor social e da criatividade.
O "Epílogo" de Manuel Castells -a verdade seja dita- não tem muito a ver diretamente com a ética do hacker. Dá, isso sim, o contexto do mundo em que vivemos e assinala as profundas transformações que nos levaram do paradigma industrial ao informacional e, também, da mudança qualitativa que representa para a experiência humana viver em um novo tipo de sociedade: a "sociedade-rede". Trata-se, na realidade, de um bom resumo da Era da informação -mas insuficiente quiçá, para quem ainda não leu a trilogia [3] - com algumas poucas ênfases novas a respeito da primeira edição de 1996 (a importância da revolução da engenharia genética, as características de "autômato" que tem tomado a estrutura social de rede, etc.). Reserva, no entanto, só o parágrafo do final para salientar a importância inovadora da teoria de Himanen sobre "a cultura dos hackers como o espírito do informacionalismo" -note-se que Himanen não fala exatamente disso, mas da ética dos hackers como alternativa possível ao espírito que está prevalecendo no informacionalismo. Mesmo assim, a leitura do "Epílogo" de Castells vale a pena como outra nova e sintética reformulação de sua instigante teoria sobre a desconcertante realidade em que vivemos.
No final, Himanen oferece em um apêndice uma "Curta história do hackerismo computacional" para quem não esteja muito familiarizado com a cultura dos hacker -informaticamente falando, claro.
[1] "Network society", conceito desenvolvido por Castells na Era da Informação (1996) para caraterizar a morfologia social da sociedade atual. (voltar)
[2] No original em inglês "ethicality": qualidade do que é ético. (voltar)
[3] Para uma versão também resumida, porém, teoricamente mais densa, veja-se, do mesmo autor, "Materials for the exploratory theory of the network society", The British Journal of Sociology, V.51, N°1, janeiro-março 2000, ps. 5-24 ou a excelente conclusão geral da trilogia no final do terceiro volume. (voltar)
Osvaldo López Ruiz é sociólogo, professor na Universidade Nacional de Cuyo, Argentina e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas.
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