sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

IVAN ILLICH E AS REDES

As Novas Redes

Segundo o autor, há quatro espécies de recursos ou Redes, nos quais a educação se baseia. A função das novas instituições educativas seria tornar estas redes disponíveis e acessíveis a todos.

I- Um serviço encarregue de pôr à disposição do público os objectos educativos, isto é, os instrumentos, as máquinas e os aparelhos utilizados para a educação formal.

II- Um serviço de troca de conhecimentos, uma lista actualizada de pessoas desejosas de fazer aproveitar os outros da competência própria, mencionando as condições em que desejariam fazê-lo.

III- Um organismo que facilitaria os encontros entre pares. Verdadeira rede de comunicações, registaria a lista das pretensões em matéria de educação daqueles que se lhe dirigissem para encontrar um companheiro de trabalho ou de pesquisa.

IV- Serviços de referência em matéria de educadores que permitiriam estabelecer uma espécie de anuário onde se encontrassem os endereços dessas pessoas, profissionais ou amadores, fazendo ou não parte de qualquer organismo.


I - O acesso aos objectos educativos

Segundo Illich, os objectos materiais constituem um recurso educativo fundamental. O autor enfatiza a importância da utilização e manipulação, quer dos objectos que são concebidos numa perspectiva puramente educativa, quer dos que fazem parte da vida quotidiana. Para permitir o acesso a estes bens materiais, os objectos concebidos com um fim educativo seriam apresentados em bibliotecas, laboratórios, salas de exposição (museus e salas de espectáculo, por exemplo); os outros, utilizados nas actividades diárias, em fábricas, aeroportos, quintas, etc., poderiam ser acessíveis às pessoas que desejassem conhecê-los durante um período de aprendizagem ou fora das horas de trabalho.

Na opinião do autor, o Homem encontra-se cada vez mais afastado da natureza real dos objectos concebidos pela nossa sociedade, uma vez que desconhece a constituição e o funcionamento da maioria dos produtos criados pela indústria que utiliza no dia a dia, como é o caso do telefone, ou de um simples relógio. "Com efeito, as crianças nascidas na era do plástico e dos especialistas da eficiência, não conseguem transpor certos obstáculos que se opõem à compreensão dos produtos da técnica moderna� (Illich, 1974, pp.19). Ainda que tente explorar e compreender esses objectos, é imediatamente desencorajado pela sociedade e até pelos próprios fabricantes, sob ameaça da sua avaria irremediável, de eventuais repreensões, ou utilizando vários outros pretextos. "O homem vive num meio que ele próprio concebeu e este ambiente artificial vai-se-lhe tornando tão impenetrável como a natureza o é para os primitivos� (Illich, 1974, pp.20).

No que respeita aos objectos concebidos com uma finalidade puramente educativa, como é o caso dos manuais escolares, livros, microscópios, computadores, etc., o autor considera que o acesso a estes bens materiais é também fortemente condicionado em termos de horários de acesso e de qualificações exigidas aos utilizadores. Sob o pretexto da sua conservação e protecção, o acesso aos mesmos é reduzido, retirando-lhes o seu potencial educativo. Por outro lado, alguns desses objectos, tais como os jogos didácticos realizados no âmbito escolar, são muitas vezes transformados em torneios, perdendo assim o seu carácter educativo e lúdico, desenvolvendo, em sua vez, o espírito competitivo. "É etiquetando todas as coisas, fazendo delas utensílios educativos, que a escola lhes faz perder a sua virtude viva� (Illich, 1974, pp.21). Illich propõe assim uma alteração das condições de acesso e utilização desses objectos, de modo a tornar acessíveis o meio físico e os recursos materiais próprios para a educação, devolvendo-lhes o seu valor educativo.

Segundo Illich, nas cidades modernas, o facto de as pessoas e, sobretudo as crianças, serem mantidas longe dos centros de actividades (fábricas, indústrias, etc.), sob o pretexto de que são particulares, impede o conhecimento e a compreensão dos métodos de produção. Neste sentido, acusa igualmente as empresas, bem como as entidades ligadas à investigação científica, de quererem, para seu interesse económico, manter a exclusividade no que respeita a conhecimentos técnicos e científicos, métodos e bens de produção, impedindo por isso a sua divulgação e impossibilitando a partilha de conhecimentos. O autor defende, pelo contrário, o reconhecimento do valor educativo destes centros de actividade e a permissão de acesso às respectivas instalações. Illich defende ainda que uma maior participação social das crianças através do desempenho de cargos na comunidades, contribuiria para o seu desenvolvimento pessoal, beneficiando igualmente a sociedade no geral.

"Desapareça o controle que o sector privado ou as instituições profissionais exercem sobre as possibilidades de educação contidas nos objectos� (Illich, 1974, pp.33).
II- A troca de conhecimentos

Illich defende a existência de um serviço de troca de conhecimentos cuja função seria permitir o encontro e a reunião de pessoas que queiram transmitir/receber um conhecimento específico. Essa troca, segundo o autor, seria baseada na demonstração directa por parte de quem pretende transmitir determinado conhecimento. São referidos exemplos como a aprendizagem de línguas, a culinária, a condução, etc. Ao constatar o desaproveitamento de muitas das pessoas capazes de demonstrar determinado conhecimento, Illich manifesta-se contra a exigência de diplomas e currículos aos educadores. "Os diplomas representam um obstáculo à liberdade da educação, fazendo do direito de partilhar os seus conhecimentos um privilégio reservado aos empregados das escolas� (Illich, 1974, pp.38). Considera ainda desprovido de sentido esperar dos educadores que inspirem o gosto de aprender nos alunos, já que acredita que esse interesse existe em cada um. "A instrução tem de partir de uma escolha pessoal" (Illich, 1974, pp.21).

Actualmente, de acordo com o autor, não existe partilha de conhecimentos técnicos por parte do profissional moderno, pois a especialização e o monopólio da informação são tidos como uma vantagem competitiva em relação aos demais. Illich defende por isso a criação de centros abertos ao público, em particular nas zonas industriais, que forneçam certas habilitações: saber ler, escrever à máquina, aprender línguas estrangeiras, conhecer a programação, compreender circuitos eléctricos, etc. Propõe ainda um sistema em que aquele que adquira determinados conhecimentos nestes centros, se dedique posteriormente à sua demonstração. Para tal, existiriam organismos e centros de informação encarregues de estabelecer e difundir as listas dos educadores voluntários e dos educandos interessados e as informações sobre ambos. "Apareceria uma escola inteiramente nova, constituída por aqueles que teriam ganho a sua educação partilhando-a com os outros" (Illich, 1974, pp.40).

Na perspectiva do autor, os exames curriculares utilizados como critério de escolha pelos empregadores, deveriam ser substituídos por provas práticas de competência, baseadas na demonstração dos conhecimentos. Desta forma, a selecção do profissional seria não só mais justa, como também mais eficiente e vantajosa para o empregador. "Basear a escolha, em matéria de emprego, apenas numa competência demonstrada, por oposição a toda a discriminação que parta de um currículo educativo" (Illich, 1974, pp.40).
III- A reunião dos pares

Illich defende a ideia de que "um autêntico sistema educativo deveria permitir a cada um escolher qualquer actividade, para a qual procuraria um par da sua força" (Illich, 1974, pp.42). O termo pares refere-se a pessoas que, partilhando interesses e aptidões comparáveis, decidem realizar juntas a sua pesquisa, ou que se unem para se exercitar na prática de uma actividade partilhada. Esta definição inclui conjuntos de pessoas interessadas em actividades tão diversas quanto comentar livros ou artigos, praticar determinados jogos, realizar excursões, partilhar conhecimentos de mecânica, ou qualquer outra actividade.

Para permitir a aproximação e o encontro daqueles que, num dado instante, partilham um mesmo interesse específico, o autor propõe a organização de reuniões entre crianças desde a mais tenra idade como forma de incentivar a descoberta e partilha de interesses comuns. Propõe ainda a criação de um sistema, ou rede de comunicação apoiada numa base de dados informática, onde cada utente procederia a uma inscrição indicando o seu nome, morada e actividade para a qual pretendesse companheiro(s). As respostas à respectiva solicitação seriam dadas através do correio ou, nas grandes cidades, através de terminais informáticos. "Uma tal rede dispondo de recursos públicos seria o único meio de garantir o direito de livre reunião e de preparar os cidadãos para esta actividade fundamental� (Illich, 1974, pp.44). O direito de reunião livre de pessoas, apesar de ser reconhecido legal e politicamente, é desrespeitado sempre que a lei impõe determinadas formas de reunião que passam por um recrutamento obrigatório, de que são exemplo o Serviço Militar e a Escola. Descolarizar passa então pela abolição dessa obrigatoriedade, ao mesmo tempo que pelo reconhecimento do direito à participação de qualquer pessoa numa reunião de pares, independentemente da idade ou do sexo. Os edifícios escolares seriam reconvertidos em pontos de encontro de acesso livre para a reunião dos pares, criando-se assim um espaço privilegiado para a troca de ideias.

Illich prevê o surgimento de objecções a estas redes, nomeadamente por poderem (a) ser consideradas um meio artificial de contacto; (b) ser menos acessíveis aos pobres, que mais dela necessitam; (c) constituir uma forma de comunicação impessoal (através dos computadores); (d) desagradar aos que consideram que qualquer aproximação deve basear-se em experiências partilhadas e em afinidades profundas. No entanto, ressalva outras características que considera compensatórias, como a possibilidade de participação em vários grupos de pares e de reunião de pessoas de diferentes pontos geográficos capazes de permitir partilhar experiências de vida muito diferentes. Segundo Illich, este sistema de comunicação poderia dar origem ao aparecimento de comunidades, ou seja, ao desenvolvimento da vida comunitária à escala local, em muitos casos desaparecida. A rede de comunicações permitiria ainda aos cidadãos uma maior independência das instituições públicas, bem como uma perspectiva mais crítica e livre relativamente aos profissionais creditados que lhes prestam os serviços, cuja competência não pode, de outra forma, ser aferida. A troca de informação através das redes de comunicação, permitiria ao estudante escolher o seu professor, ao doente conhecer o seu médico, etc.
IV- Educadores profissionais

A ideia base é a de que se os cidadãos dispusessem de possibilidades de escolha da sua instrução, aumentaria a procura de especialistas nas áreas do seu interesse. Desta forma, a descolarização da educação contribuiria para dinamizar a procura de indivíduos possuidores de uma competência prática, assegurando a sua independência e, logo, a sua credibilidade.

Illich distingue três tipos distintos de competências educativas necessárias ao funcionamento das redes:

a) administradores educativos - encarregues de pôr em funcionamento as redes, ou seja, de garantir a eficiência e permanência das vias de acesso aos serviços administrativos;

b) conselheiros pedagogos - responsáveis por guiar estudantes e pais na utilização das redes, isto é, auxiliar a encontrar o caminho mais apropriado para atingir os respectivos objectivos;

c) iniciador educativo - mestre ou verdadeiro guia, encarregue de auxiliar nos caminhos da exploração intelectual.

As duas primeiras são consideradas como verdadeiras profissões educacionais, que visam facilitar os encontros entre os seres desejosos de aprender e aqueles que possam servir-lhes de orientação, permitindo-lhes o acesso aos objectos educativos. Quanto ao iniciador educativo, ser-lhe-ia exigida disciplina intelectual, imaginação vasta e vontade de se associar a outras pessoas para as esclarecer. Neste último caso, estabelecer-se-ía uma relação de mútua estima entre mestre e discípulo, de onde ambos retirariam prazer, o que beneficiaria, em muito, a aprendizagem. É para mestre e discípulo "uma espécie de recreio (em grego scholê), porque esta actividade contenta-se com ter um sentido para ambos, sem se propor qualquer objectivo particular" (Illich, 1974, pp.58). Neste sentido, o iniciador educativo tornar-se-ía numa espécie de pedagogo, uma vez que, ao contrário do professor tradicional, teria o poder de agir fora da escola, sobre a sociedade inteira.

Em suma, para Illich, a defesa do direito de livre acesso aos instrumentos de ensino e do direito de partilhar conhecimentos e crenças com outros, pressupõe uma revolução educativa que:

* torne livre o acesso às coisas, abolindo o controle que as entidades particulares e as instituições exercem sobre o seu valor educativo;
* torne livre a partilha das aptidões, garantindo o direito de as ensinar ou de as demonstrar a pedido;
* torne livre os recursos criadores e críticos dos seres humanos, restituindo a todo o indivíduo o poder de convocar reuniões ou de participar nelas;
* liberte o indivíduo da obrigação de limitar as suas esperanças de acordo com os serviços que podem oferecer-lhe as profissões estabelecidas.


"A descolarização da sociedade extinguirá inevitavelmente as distinções entre a economia, a educação e a política, sobre as quais repousam a estabilidade do mundo actual e das nações"(Illich, 1974, pp.62).

FONTE : http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/illich/index.htm#As%20Novas%20Redes

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