“Ele queria ver mais as coisas, todas, que o olhar não dava”.
(Guimarães Rosa, in: Manuelzão e Miguilim)
(Guimarães Rosa, in: Manuelzão e Miguilim)
Triste, triste é o talento que nunca pode florescer, que persiste perenemente asfixiado na anemia de recursos e de oportunidades. Doloroso é ver vidas que se queimam inapelavelmente na fogueira da miséria, cuja fumaça é vista de longe por olhares soberbos com preconceito, desprezo e arrogante presunção.
Lindo e sublime é contemplar o manancial se abrir sobre a carência, fazendo aflorar inteligências e dignidade de viver, tornando realidade o que antes era um longínquo potencial.
Miguilim, menino pobre, mas curioso com um mundo do qual não vê nada além de imagens borradas que o cerca, tem sua travessia rosiana marcada pelo encontro com o Dr. José Lourenço, que lhe percebe a miopia e lhe coloca os óculos, permitindo ao garoto ver um universo que, mesmo próximo, nunca lhe fora tangível.
“Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...”.
As lentes corretivas, a possibilidade de estudar na cidade: o dr. José Lourenço é o catalisador de um processo que dará a Miguilim a possibilidade de se desenvolver como pessoa.
Numerosos são os “Miguilins” Brasil afora. E poucos, muito poucos, são os “doutores José Lourenço”.
Apesar do que se poderia supor a partir do nome, o paulistano Miguel Nicolelis não é um “Miguilim”. É um “dr. José Lourenço”.
Quando ainda era estudante de medicina na USP, nos anos 80, Nicolelis fundou uma associação acadêmica que permitiu às crianças carentes da região utilizar as quadras esportivas da universidade. A entidade estudantil existe até hoje e, através dela, milhares de crianças que não tinham possibilidade de praticar esportes podem fazê-lo em um ambiente que cultiva valores como a solidariedade e o espírito de equipe.
O atual projeto liderado por Nicolelis é muito maior do que a escolinha de esportes. Mas o tamanho de seu desafio não faz frente à grandeza de seu caráter.
Aos 47 anos, Nicolelis é um pesquisador de primeira grandeza nas neurociências, tendo sido apontado como um dos 50 cientistas mais influentes do mundo pela Scientific American. Há anos coordena na Universidade de Duke, na Carolina do Norte (EUA), um laboratório que está na vanguarda da neuroengenharia. Os animadores resultados de seus trabalhos exploram a movimentação de próteses mecânicas sob controle do pensamento, a partir de microchips implantados em regiões estratégicas do cérebro. Suas pesquisas podem trazer uma possibilidade terapêutica extraordinária para pacientes vítimas de lesões medulares, posicionando-o entre possíveis futuros laureados pelo Prêmio Nobel.
Tantos anos produtivos e gloriosos no “Primeiro Mundo” não lhe esfriaram a consciência sobre o país de onde veio. O panteão nacional e a bossa-nova que emana da página do seu laboratório na internet são reveladores. Cônscio do impacto que a educação e a ciência têm na trajetória de um povo, Nicolelis decidiu capitanear um ambicioso projeto que tenta colocar no mapa das neurociências a pobre Macaíba, cidade próxima da capital do Rio Grande do Norte.
É lá que ele cravou a bandeira do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN), com o propósito de estabelecer um pólo avançado em neurociências, atraindo pesquisadores da área, sobretudo jovens brasileiros que se encontram espalhados em universidades do exterior.
Além dessa vocação para a excelência na pesquisa, o alvo do IINN é ainda mais amplo: é usar a ciência como agente de transformação social. Por isso, no complexo do Instituto, há também um centro de saúde e duas escolas com bem equipados laboratórios de física, química e biologia, acolhendo jovens carentes de 11 a 17 anos.
Conhecedor das dezenas de boas idéias que brotaram no Brasil, mas que naufragaram em vicissitudes político-econômicas, Nicolelis impulsionou o IINN não só com o apoio dos governos estadual do RN e federal, mas, sobretudo, com o suporte estrangeiro. Nicolelis usou seu enorme prestígio para estabelecer parcerias e angariar fundos junto a prestigiosas instituições do mundo todo, como o Instituto Max Planck (Alemanha), além de universidades da América do Norte, da Europa e de Israel.
O sonho de Nicolelis levantou vôo, embora nem todos os projetos ligados ao instituto estejam já funcionando. Mas já há pesquisadores produzindo ciência, publicando resultados em jornais importantes. É o caso de Sidarta Ribeiro, ex-aluno de pós-doutorado no laboratório norte-americano de Nicolelis. Apaixonados pelo desafio, eles dizem com firmeza: “Escolhemos Natal porque acreditamos que a produção científica brasileira precisa ser descentralizada do eixo Rio - São Paulo - Minas Gerais. O conhecimento de ponta deve ser disseminado para outros pontos do país; o Nordeste é a Califórnia brasileira.”
Nicolelis e seu IINN se contrapõem frontalmente ao zeitgeist brasileiro.
Ele se choca contra os celerados que chafurdam na ignorância da história brasileira, apoiando excrescências ideológicas como o “Movimento República de São Paulo” e “O Sul é o meu país”.
Bate-se contra a proposta irresponsável que introduz na sociedade brasileira o germe do franco conflito racial, através da política de cotas nas universidades públicas.
Digladia-se com os que depreciam e discriminam nordestinos apenas por terem nascido onde nasceram.
Confronta-se com aqueles “bem intencionados” que querem isolar índios do contato com a civilização.
Olha com consciência e civismo para os problemas de seu país, chamando-o pelo nome, Brasil, enquanto muitos outros, em galhofa depreciativamente irresponsável, tratam por “Banânia”, talvez por refutarem o esforço que implica na construção de uma nação, talvez por rejeitarem uma terra que não esteja pronta como outras.
Por mais comovente que seja ver o empenho obstinado de um brilhante cientista que poderia nunca mais olhar para o Brasil, não será Nicolelis e seu IINN que salvarão o nordeste. Ele não é um messias. Tampouco será a transposição do São Francisco ou o Bolsa Família que transformarão o sertão. Não será uma ação governamental isolada que resgatará esse pedaço negligenciado do Brasil. Será um ciclo virtuoso de investimentos individuais, privados e estatais que trará o desenvolvimento à região, segurando migrantes, magnetizando talentos, gerando riqueza. Talvez já esteja começando, com a Ford na Bahia, com Porto de Suape em Pernambuco, com o petróleo em Mossoró, com o IINN no Rio Grande do Norte, com o turismo que atrai cada vez mais europeus para os resorts e pousadas do nordeste.
Acreditar e investir no poder civilizador da produção e difusão do conhecimento é a via mais segura rumo ao desenvolvimento, rumo à dignidade de vida. É o que fará esse jovem país “Miguilim” livrar-se de sua miopia, passando a enxergar o mundo, a si mesmo e seus enormes problemas sem indulgências, sem patriotadas, mas com a esperança que advém do trabalho, do talento, da inteligência e da coragem.
“E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora ele sabia.”
Quando curados da miopia causada pela ignorância, pelo preconceito, pela covardia e pela falta de compromisso cívico, o país que se descortina diante dos nossos olhos argutos é ainda cheio de problemas graves, mas pleno de riquezas e de possibilidades. É o nosso Mutum, o nosso BRASIL.
Por mais comovente que seja ver o empenho obstinado de um brilhante cientista que poderia nunca mais olhar para o Brasil, não será Nicolelis e seu IINN que salvarão o nordeste. Ele não é um messias. Tampouco será a transposição do São Francisco ou o Bolsa Família que transformarão o sertão. Não será uma ação governamental isolada que resgatará esse pedaço negligenciado do Brasil. Será um ciclo virtuoso de investimentos individuais, privados e estatais que trará o desenvolvimento à região, segurando migrantes, magnetizando talentos, gerando riqueza. Talvez já esteja começando, com a Ford na Bahia, com Porto de Suape em Pernambuco, com o petróleo em Mossoró, com o IINN no Rio Grande do Norte, com o turismo que atrai cada vez mais europeus para os resorts e pousadas do nordeste.
Acreditar e investir no poder civilizador da produção e difusão do conhecimento é a via mais segura rumo ao desenvolvimento, rumo à dignidade de vida. É o que fará esse jovem país “Miguilim” livrar-se de sua miopia, passando a enxergar o mundo, a si mesmo e seus enormes problemas sem indulgências, sem patriotadas, mas com a esperança que advém do trabalho, do talento, da inteligência e da coragem.
“E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora ele sabia.”
Quando curados da miopia causada pela ignorância, pelo preconceito, pela covardia e pela falta de compromisso cívico, o país que se descortina diante dos nossos olhos argutos é ainda cheio de problemas graves, mas pleno de riquezas e de possibilidades. É o nosso Mutum, o nosso BRASIL.
PS: Depois de uma longa temporada na Holanda, Fernando Sampaio retornou ao Brasil. Com sua consciência cheia de ideais iluministas (Lumières), ele empenha sua experiência, sua cidadania e seu trabalho na construção de um país melhor. Leia seu depoimento em:
http://deslumieres.blogspot.com/2008/05/brasil-holanda.html
http://aterceiramargemdosena.blogspot.com/2008/05/nicolelis-miguilins-e-o-mutum.html
http://aterceiramargemdosena.blogspot.com/2008/05/nicolelis-miguilins-e-o-mutum.html
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